29 de março de 2024
O “Guri”, o piano, o Elton e os cupins

O “Guri”, o piano, o Elton e os cupins

O “Guri”, o piano, o Elton e os cupins

(Assista o link logo após ler esta crônica, está no final desta página. Ele explica tudo) 

Tem coisas que ficam definitivamente lacradas em nossas vidas. 

Por isso fico bem bobo nos finais de ano. E tudo leva às lágrimas. Talvez por viver momentos delicados nesta pandemia, talvez por rever todo ano, no VT da memória, em looping, o filme da minha vida. Talvez por nada disso: mas porque ainda vale a pena se emocionar de verdade. 

Corta a cena. Meu pai tinha uma dedetizadora lá em Porto Alegre. Era com ela que complementava a sua magra receita de engenheiro agrônomo da Secretaria da Agricultura. Sua fórmula era única, não agredia o meio-ambiente e durava uma eternidade. Por isso tinha clientes de todos os tipos e diapasões. 

Numa de suas andanças atendeu a um chamado urgente de uma tradicional fábrica de pianos gaúcha. Era a oficina do velho “Marocke Instrumentos”, um alemão muito sisudo e trabalhador, cuja referência em pianos, teclados, órgãos e afins tinha alcançado todo o País. Vinha gente de longe comprar em seu tradicional estabelecimento. E os produtos, praticamente artesanais. Fino trato! 

A missão era cascuda: Meu pai tinha que dar uma de médico de UTI e salvar da morte um velho piano alemão, outrora muito “chic”, mas que jazia abandonado num porão e totalmente carunchado.  

Uma tonelada de pó, ao lado e por baixo do instrumento, revelava a carnificina que os malditos cupins tinham feito por dentro. Volta e meia um ou dois insetos malditos botavam a carinha branca pra fora e ficavam ali mastigando madeira como se rissem da gente. 

Tinha tanto caruncho que o dono da loja já nem tinha mais esperança. Estava condenado à “fria morte dos pianos”, em algum purgatório musical, para onde encaminhavam estes proscritos, até virar lenha ou sucata. 

Naquele dia histórico do resgate fui junto com meu pai até a fábrica de sonhos do seu Marocke, em missão de salvamento. Enquanto ele fazia o diagnóstico para salvar da extrema unção aquele pobre diabo fiquei passeando pelo porão, mais feliz que pinto no lixo, cercado de todo tipo de pianos, cravos bem temperados, órgãos de tubo ou sem tubo e…”Doutor caruncho”: o pobre doentinho. Olhei de soslaio, o danado parecia estar me chamando. (sic)

E foi na ponta dos pés de meus 7 anos que soltei minha mão pelo teclado capenga. Quanto mais eu apertava as teclas, algo mágico acontecia: Elas cantavam fazendo clac clac cla e se transformavam em melodia.  

Colcheias e semicolcheias despencavam em meio ao farelo de cupim. E mais algumas breves e semibreves arrancadas faziam brotar, do nada, antigas canções de Natal. Com o ouvido absoluto, no comando a mão direita ia e voltava com a melodia, e a mão esquerda, catando milho, ia arranhando algo parecido com um acompanhamento. 

Corta a cena. Ruído. Olho pra trás de súbito: Tínhamos plateia!  

Duas sombras, em contraluz, me observavam em minha estrepolia: meu pai com os olhos marejados e o velho e sisudo Marocke, que sorria por dentro, talvez antevendo o que ia acontecer. 

Passagem de tempo.

Chegou dezembro. Dia 22 meu aniversário. Depois em 48 horas viria o Natal, timtim, Reveillon. O ano tinha voado. 

Volto cansado do colégio no último dia de aula, era dia 22 (marrequinha com arroz) de um dezembro muuuito frio e cinzento, a cara de Porto Alegre, Paralelo 30. Entro todo “encarangado”, gelado da rua, subo as escadas de casa passo a passo e ao entrar na sala meu coração se aquece instantaneamente. 

Lá estava ele: imenso, gigante, majestoso, grandiloquente. E todo envernizado. SEM CARUNCHO!  

-TEU PIANO!

Não acreditei. Pedi para repetir:

– TEU PIANO CHEGOU.

Coração pipoqueou, quase  desabei do banquinho. Olhei sem acreditar para pai, mãe, família real toda reunida, pedindo ação. De novo plateia!

O velho piano Essenfelder de parede, com suas teclas pretas e brancas era um escancarado sorriso, boca aberta pedindo um afago.  

Fechei os olhos e repeti a cena do início do ano que tava capturada no meu VT da memória. Repeti exatamente aquele dia, lá no porão da loja bolorenta e escura: Mini -flasback inevitável. 

No filme da vida real um sisudo seu “Marocke” prestado o serviço, tinha ordenado pro meu pai, metade em português metade em “alemon”: 

– Pai, por favoooorrrrr,  leva este piano ressuscitado pro teu filho! (Uma vez) .” Ele tem booom ouvido pro música”….! PROST e levantou uma taça invisível no ar, sorriso nos olhos. 

Daquele dia em diante, haja o que houver, sempre ergo meu pensamento ao querido piano onde dedilhei lindas melodias. Onde deixei tatuadas minhas mágoas, expurguei minhas dúvidas, conquistei meus amores, revivi minhas saudades todas. Confraternizei gostoso com os bons amigos… E ataquei firme e forte em meus momentos mais felizes.  

Muito acompanhei meu pai,em família, ele na gaitinha de boca e eu, bem suave brandindo as teclas em PPP Pianíssimo, para não abafar a performance dele. E lá se vão trocentos anos pelo pentagrama da vida. 

Em 2018, quando uma rede inglesa lançou um videoclipe de Natal com sir Elton John foi uma bofetada de emoção. Ali estava escrita e escancarada a minha própria biografia. Podia ter roteirizado. Queria ter criado. Queria ter dirigido. Queria ter entrado para dentro deste  clip, como no túnel do tempo, porque é a reencarnação do que eu vivi. 

No vídeo (link abaixo) batizado de  “The Boy and The Piano”, é contada de maneira reversa a carreira de Elton para descobrir o momento que definiu seu destino, embalado por “Your Song”. 

E aqui o cronista encontra o músico e os dois rendem um tributo à emoção. 

O guri cresceu, a fábrica de sonhos infelizmente fechou, meu pai foi pro andar de cima, o piano foi vendido, os cupins foram pro beleléu, mas a história é recontada todo Natal, em um looping infinito e mágico. 

Obrigado Sir Elton John por ter ressuscitado estes momentos. Jamais chegarei aos seus pés como artista, mas quando toco “Love Songs”, de ouvido é isso que sinto dentro da alma, pois  virou  a trilha da minha vida. 

ASSISTA!

Clipe produzido em 2018 pela tradicional loja John Lewis & Partners. A rede, acostumada a criar publicidades natalinas fofinhas à partir de animais de estimação e bebês, resolveu prestar homenagem a Elton John, que no início de 2018 anunciou que estaria fazendo sua última turnê antes de se aposentar de vez…“The Boy and The Piano” virou um hit. E, como a estrela de Belém, volta todo Natal. O guri agradece. 

*Imagens: Divulgação

https://prensa.li/@carlos.kober/o-guri-o-piano-o-elton-e-os-cupins/

Escrito por
Carlos Kober
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